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                Livro - Admirador Secreto

Introdução - Capítulo Um

     Isa chegou por volta das vinte e duas e trinta. Estranhou ao se deparar com a casa silenciosa e todas as luzes apagadas naquele horário. Foi até a cozinha, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água. Subiu a escada e seguiu direto para o quarto.

     Quando passou pelo corredor, teve impressão de que estava sendo observada. Ela desacelerou o passo quando pensou ter avistado algo. E, embora estivesse muito escuro, podia jurar que o vulto era de um homem. Apesar de permanecer imóvel, mantendo-se a poucos metros de distância, a presença dele não somente a intimidou, como também provocou reações contraditórias.

      - Quem está aí? – arriscou-se a jovem. Mas não houve resposta.

     Mesmo depois de ter violado a privacidade do seu lar, e ameaçado sua integridade física, ele não parecia assim tão assustador. Pelo contrário, ainda seria capaz de arrancar um último suspiro na saída, e com apenas um olhar. Isa quase não se conteve. Foi tomada por um impulso latente incontrolável, mas premeditou o desfecho ao acender as luzes. Para sua surpresa não havia absolutamente nada lá, a não ser a própria imaginação lhe pregando um susto. Entrou desapontada no quarto, mesmo assim olhou para os lados antes de fechar a porta.

     Somente a expectativa com os estudos a fariam superar qualquer tipo de distração. E foi inevitável não se identificar logo de cara com algumas disciplinas, garantindo que obtivesse um bom rendimento em sala. O que não foi necessariamente nenhuma surpresa. Por trás daquela fachada de estudante burguesinha de classe média, havia uma jovem notável, de aspirações elevadas. Apesar de ostentar uma bolsa Prada a tiracolo, presente da saudosa avó, e desfilar pelas ruas do bairro numa mini SUV zero, que ganhou dos pais após atingir a maioridade. 

     Excluindo a tentativa de sair ilesa dos trotes universitários, aplicados por um bando de veteranos desocupados, a grande animação ficou mesmo por conta dos demais acontecimentos decorrentes da primeira semana de aulas. E nem o cansaço diminuiu a empolgação de atualizar a agenda com os novos registros. Comportamento típico de uma caloura de apenas dezoito anos de idade.  

     Isa não se deu conta do horário. Debruçada sobre a agenda, em cima da cama, ainda deslizava a caneta esferográfica colorida com alguma destreza. Parecia disposta a varar noite adentro. E não se rendeu mesmo depois de ter ficado meio sonolenta, pouco antes de cair no sono. 

     No decorrer da madrugada foi tomada por uma súbita corrente de ar frio, capaz de congelar até a alma. E, quando acordou, espantou-se ao perceber que não estava em casa. O que não fez nenhum sentido. Além de não reconhecer o lugar, também não sabia dizer como foi parar lá. Imaginou que tivesse sido sequestrada, embora não estivesse amarrada e nem amordaçada. Apesar do frio quase congelante, ela se levantou daquele chão imundo e observou atentamente o cenário à sua volta. 

     O local parecia um velho galpão abandonado, infestado por teias de aranha. As paredes abrigavam cabeças de animais empalhados como se fossem troféus. E no chão, carcaças de esqueletos humanos desmembrados jaziam em pleno céu aberto. Além das correntes de ferro ensanguentadas, que também faziam parte daquela decoração horripilante, digna de filmes de terror.  

    Isabel ouviu chamarem o seu nome três vezes, e nem sequer passou pela cabeça responder. Chegou até a pensar que fosse um pesadelo, do tipo em que as interações são meramente involuntárias. Ledo engano. O ronco de um alarde sonoro a fez estremecer. E veio de um relógio europeu de pedestal, quase caindo aos pedaços, de tão velho, mas ainda assim deu informes do horário. Três da manhã. O som das badaladas parecia ter ecoado dentro de sua cabeça. Foi quando ouviu passos vindo em sua direção, e um desconforto inexplicável redobrou sua angústia. 

   De repente não só a iluminação local ficou precária, como também houve uma diminuição significativa da visibilidade. O galpão imergiu numa espécie de penumbra, e a visão periférica cedeu lugar às sombras. O que não impediu Isa de assistir ao final do primeiro ato. A pouca luz serviu como pano de fundo para a entrada de uma figura obscura que se movia rapidamente pelas paredes. Mas ele não estava sozinho. Trouxe consigo uma jovem chorosa, e a mantinha presa pelo cabelo. 

   – Por favor, não faça isso! – suplicou. – Deixe-me ir embora. Prometo que não contarei nada a ninguém. 

     Ele ignorou os apelos. E continuou arrastando-a pelas paredes e pelo teto. Depois a lançou de uma altura de mais de quinze metros. Isa quase não conseguiu reprimir o grito de pavor. A garota ainda agonizava no chão, banhada no próprio sangue, quando ele se aproximou sorrateiro. Manteve o olhar fixo nela, como se fosse devorá-la. Naquele mesmo instante um clarão repentino iluminou todo o galpão, e Isa teve que usar as mãos para se proteger dos lampejos. Não conseguiu identificar a vítima, e tampouco o agressor, mas se arrepiou ao ver que a estranha luz amarelada saía dos olhos dele. A pequena entrou em pânico, e imediatamente fechou os olhos. 

   Permaneceu assim ainda durante alguns minutos, o suficiente para sentir o ritmo acelerado dos próprios batimentos cardíacos. Não sabia explicar como se meteu no meio daquela confusão. E por mais que tentasse acordar, não lhe pareceu que fosse uma opção. O som de um uivo ensurdecedor a intimidou ainda mais. Isa abriu os olhos e, para a sua surpresa, ambos simplesmente haviam desaparecido. 

    Respirou fundo e dominou o pavor. Precisava agir antes que ele voltasse. Não dava para enxergar quase nada, e ainda tinha alguns detritos espalhados pelo chão. O galpão exalava um odor insuportável, que mais parecia de carne podre. Chegou a cogitar a possibilidade de serem cadáveres em decomposição. Só de pensar nisso, sentiu o estômago embrulhado e ficou nauseada. 

   Ela seguiu andando em linha reta, acompanhando uma das paredes laterais até encontrar uma saída. Depois de trombar com objetos rudimentares e pisotear excrementos, entre outras substâncias orgânicas, finalmente encontrou uma porta aberta. Suspirou aliviada e correu em direção à rua. Tomada por extrema exaustão, a jovem atravessou e foi sentar numa mureta, só enquanto recuperava o fôlego. Foi quando sentiu uma estranha onda de vento gelado percorrendo pelo seu corpo, que a deixou completamente paralisada. Parecia que o coração também pararia de bater a qualquer momento. E, então, alguém surgiu por trás dela e tocou deliberadamente no seu ombro. 

    Uma forte sensação arrebatou Maria Isabel, e os segundos que se passaram foram os mais longos de sua vida. Mas num piscar de olhos vislumbrou a área toda à sua frente, o suficiente para que a visão ficasse turva e não mais sentisse o peso do seu corpo. Quando teve o ímpeto de gritar, como em câmera lenta, foi prontamente amparada antes mesmo que caísse no chão. Isa perdera os sentidos, inerte, entregue a própria sorte, e nos braços de seu possível algoz. 

     Quando despertou já estava de volta a sua casa, e de cara no assoalho. O suor ainda escorria pelo seu corpo, e um tremor incontrolável apoderou-se de suas mãos. A boca seca e os lábios ressecados apenas confirmaram aquela passagem indecifrável. Isabel levantou se sentindo mal, e a queda de sua cama parecia ser o menor dos seus problemas. Tinha a real sensação de ter sido atropelada. A verdade é que estava confusa e com sede. Revirou o quarto atrás da garrafa de água. Mal conseguia respirar. 

    - Não acho que foi um pesadelo...  – sussurrou Isa. – É como se eu tivesse estado lá, e... – hesitou – presenciado um crime. – Levou as mãos ao rosto. – Mas o que é que eu estou dizendo... Isso é loucura! – olhou-se no espelho e balançou a cabeça em negação. – Meu Deus, o que está acontecendo comigo?! 

   Não sabia o que pensar. E seria insano acreditar que viu alguém morrendo naquele galpão. Nem dava pra descrever o quê exatamente atacou a garota. A menos que ele fosse um alpinista do além, para ter escalado daquele jeito, sem nenhum tipo de equipamento. Parecia mesmo algo que só acontece em sonhos.

     Quando Isa checou o celular, já passava das quatro da manhã. Relutou muito antes de adormecer, o corpo inteiro latejava de dor. Outro efeito indesejável que não deveria ter acompanhado a sensação do déjà vu. E considerando o fato de que não estava sozinha quando apagou,  pareceu óbvio que alguém andava no seu encalço. Embora não o tenha visto, sentiu o leve toque amadeirado do seu perfume. Uma fragrância marcante e estranhamente familiar. Restava agora saber de quem.  

     

                                                                                              ***   

                                                           

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